Lúcio Geller Junior*
No final do mês de abril foi publicado no Brasil o livro O assassinato de uma nação: como os Estados Unidos e a OTAN destruíram a Iugoslávia (Da Vinci). Nele, o historiador estadunidense Michael Parenti apresenta uma arrojada investigação sobre o fim da Iugoslávia na década de 1990. Sem cair em reducionismos binários, Parenti procura inserir o papel dos Estados Unidos e de seus aliados da OTAN nas guerras e conflitos fratricidas que levaram ao trágico, e ainda latente, desmembramento da Iugoslávia.
O autor, que jamais escondeu isso, é um dos principais intelectuais de esquerda dos Estados Unidos e ferrenho crítico de sua política externa. A primeira edição de seu livro foi publicada há duas décadas, ainda no calor dos acontecimentos, e chega ao Brasil sob outras circunstâncias, com alguns dos mesmos personagens: a guerra na Ucrânia.
Em tempos de fake news e de uma extrema direita que chama qualquer um que pense diferente de “doutrinador marxista”, um livro como este poderia ser facilmente descartado sem que se leia uma única página. O posicionamento político do autor e o momento de sua publicação já seriam suficientes para desqualificá-lo previamente – embora a questão ucraniana tenha bagunçado muitas das afinidades globais das direitas.
Qual a solução diante do impasse acima? Fazer uma história científica e neutra? Tal proposição não é nova e tampouco foi bem sucedida quando, há não muito tempo, ofereceu autoridade científica ao racismo e ao colonialismo europeus, como no caso das teorias raciais e de superioridade civilizacional. Ao invés disso, quero defender que a política e o presente são, na verdade, fundamentais para a história.
Primeiro, porque o contrário legitima, mesmo sem querer, o discurso reacionário. Segundo, porque a sua presença na escrita da história não é em si mesma um problema. É através dela que Parenti consegue nos oferecer, por exemplo, uma visão a partir de dentro dos Estados Unidos e de seus aliados sobre a Iugoslávia, um ângulo muito pouco observado à época da escrita de O assassinato de uma nação.
Isso não significa que vamos sempre encontrar boas histórias. Não raro, existem interpretações nocivas ao convívio social ou que limitam a pesquisa a uma visão única. A questão é conseguir separar esses diferentes tipos e saber se cada um deles permite uma história plural. Para tanto, usarei como exemplo um assunto que nasceu rodeado de polêmicas: os estudos sobre o mundo soviético que, de certa forma, ocupam uma posição privilegiada dentro da história das experiências comunistas de maneira geral.
Como escrever a história da União Soviética?
Já durante a Revolução Russa surgiram algumas de suas primeiras interpretações, como a cobertura do correspondente estadunidense John Reed, Os dez dias que abalaram o mundo (1919), prefaciada pelo próprio Vladimir Lênin. Dez anos depois, o diretor Sergei Eisenstein transformaria as páginas de Reed nas inesquecíveis imagens do filme Outubro (1927), uma obra-prima não só do cinema soviético, ao lado de O Encouraçado Potemkin (1925), mas de todas as vanguardas artísticas da primeira metade do século XX.
A conquista do poder pelos bolcheviques em 1917 criou assim toda uma mitologia ao redor da ideia de que tal feito foi uma combinação bem sucedida de estratégia militar e insurreição popular, sob a liderança do partido de Lênin. Mesmo exilado, Leon Trotsky escreveu entre 1930 e 1932 os três volumes da sua História da Revolução Russa, reiterando o mito da epopeia revolucionária e difundindo conceitos que se tornariam caros ao pensamento marxista, como a “lei de desenvolvimento desigual e combinado”.
Nessa mesma época, algumas análises começaram a traçar uma linha reta entre a União Soviética e a Alemanha nazista através da noção de “totalitarismo”. O termo, na realidade, foi cunhado pelos antifascistas italianos e acabou sendo apropriado pelo regime de Benito Mussolini para se (auto)definir: uma síntese do Estado e do indivíduo (Stato totalitario), nas palavras de seu ideólogo Giovanni Gentile (1928).
Exatamente no momento da invasão italiana da Etiópia (1935) e da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a União Soviética era internamente reordenada através de métodos coercitivos, como expurgos políticos e repressões sociais. Com isso, muitos ex-revolucionários, como Victor Serge, passariam a criticar as semelhanças “totalitárias” que viam entre o nacional-socialismo e o stalinismo. Mas nunca em termos de objetivos dos movimentos. Um dos principais problemas para Serge (1938) era se o autoritarismo de Josef Stálin seria compatível com o “funcionamento da produção nacionalizada”.
Após a invasão nazista da União Soviética em 1941 e a quebra de todos os outros tratados firmados pelo Terceiro Reich, inclusive com a Europa continental na Munique de 1938, as comparações diminuíram. Como observaria o teórico alemão Siegfried Kracauer em 1949, o próprio cinema hollywoodiano seria simpático com a imagem de Stálin quando todos passaram a lutar do mesmo lado contra o Eixo naqueles anos.
Entre o fim da “guerra quente” e o início da Guerra Fria surge nos meios acadêmicos ocidentais um interesse pelo estudo da União Soviética, que se apresentava como modelo para a reconstrução dos países do Leste Europeu, onde o Exército Vermelho havia debelado o domínio fascista. O crescente antagonismo entre os Estados Unidos e a União Soviética resulta no retorno do termo “totalitarismo”, agora com um verniz de ferramenta teórica e voltado para os países do bloco socialista.
Surge daí uma verdadeira “teoria do totalitarismo”, centrada em duas obras antagônicas: Origens do totalitarismo (1951), de Hannah Arendt, e Totalitarismo e autocracia (1956), de Carl Friedrich e Zbigniew Brzezinski. O primeiro contribuiu mais para a disseminação do termo do que pela tese de continuidade entre o colonialismo e o fenômeno totalitário; já o segundo cumpre o papel de voltar a elencar características isoladas entre o comunismo soviético e o nacional-socialismo alemão.
Em todo caso, essas teorias ofereceram modelos prontos para diversos outros autores descreverem a União Soviética como um lugar sem espaço para divergências (a não ser em benefício do próprio Estado), porque um regime policial exercia o controle total sobre os indivíduos. Contraditoriamente, a revolução era interpretada mais como um “acidente histórico”, uma espécie de assalto ao poder por um grupo de conspiradores, do que como uma peça dentro desse modelo engessado.
Isso porque essas análises eram sempre feitas em oposição às experiências democrático-liberais, de modo que os problemas do Império Russo deveriam ter sido resolvidos com reformas à maneira da Europa Ocidental, e não com uma revolução socialista. O resultado disso só poderia ser um regime que não encontraria outra forma de governar senão pelo terror. É essa lógica cold warrior que alimenta as páginas de um O Grande Terror (1968), de Robert Conquest, por exemplo.
Mais do que instrumento de análise, o totalitarismo era um dogma, na medida em que qualquer aspecto da história soviética podia ser explicado como o resultado de um fator que reiterasse a sua lógica. As heranças do czarismo, as disputas pelo poder, as mudanças políticas ao longo de sete décadas, as movimentações sociais internas e as relações externas que subvertiam a divisão da Guerra Fria, ou seja, todas as suas contradições, não encontravam espaço dentro do modelo totalitário.
Tudo isso começou a ser questionado a partir do simbólico ano de 1968, na esteira dos movimentos sociais que foram da crítica ao capitalismo até o anti-imperialismo, passando pelas revoltas contra a burocracia soviética. Historiadores como Sheila Fitzpatrick (1982) e Ronald Suny (1972) surpreenderam vários lugares-comuns da literatura “totalitária” ao mostrarem uma face bem mais complexa da União Soviética, com melhorias sociais e de representação política, ao lado de diversidades e disputas regionais.
Porém, uma mudança na década de 1980 impactou as revisões em curso. As tendências da Guerra Fria ressurgiram com o fim da União Soviética e do socialismo no Leste Europeu, o que para os cold warriors seria a prova de um “empreendimento que foi errado desde o início”, como disse em tom apologético o historiador Martin Malia (1991). Sua ruína também reforçou a ideia de que o mundo assistia ao fim de um ciclo. Para um entusiasta do neoliberalismo como Francis Fukuyama (1992), a humanidade achou o “fim da história” com o predomínio do capitalismo; enquanto que para o historiador marxista Eric Hobsbawm (1995) era o fim de uma “era” de breves e extremas transformações.
A abertura dos arquivos soviéticos gerou resultados contraditórios. Em vez de confirmar o modelo totalitário, a documentação constrangeu livros como o de Conquest ao revelar um mar de variáveis para explicar a violência soviética. Certo é que não se pode negar que Stálin impôs métodos brutais contra a sua população para atingir resultados por vezes aquém do esperado, mas nada disso foi feito com vistas a conquistar, à maneira nazista, um “espaço vital” (Lebensraum) e uma superioridade racial (Lebensborn). Não à toa, os críticos dos cold warriors adentraram o século XXI com um livro de título significativo, Para além do totalitarismo (2009).
Como diria Lênin, que fazer?
A trajetória dos estudos soviéticos apresentada acima não esgota as discussões, tampouco possui essa ambição. Tenho certeza de que deixei de fora muitos trabalhos e autores importantes. Contudo, como disse, minha intenção está mais em chamar atenção para o papel da política e do presente na escrita da história de um tema tão candente como o comunismo do que adentrar em seus meandros.
Nesse sentido, talvez o que mais sobressaia é a sinuosidade das interpretações sobre a União Soviética. Mesmo passado o calor da Revolução Russa, as principais tendências de escrita no entreguerras, na Guerra Fria e no mundo pós-soviético refletiam o momento histórico de cada época. E isso não vale apenas para os cold warriors, mas também para os seus críticos, insatisfeitos com os parâmetros de até então. Prontamente, alguém poderia perguntar se não é possível a realização de um estudo despretensioso da União Soviética. Para responder, volto ao problema inicial.
O caso da União Soviética mostra algo que pode soar um tanto óbvio: história é escrita no presente (ainda que no presente daquilo que se escreve). Mas não só isso. História se escreve a partir do presente, ou seja, é escrita dentro de uma cultura, de diferentes espaços de formação e produção de conhecimento e de preocupações éticas e políticas do seu tempo. Nada disso é imutável, na medida em que uma determinada forma de interpretar o mundo pode surgir e durar muito pouco ou depois ressurgir e impactar de maneira prolongada, como a ideia de totalitarismo, que seguiu os dois caminhos.
Se a visão sobre a União Soviética desde os anos de 1970 é diferente da de décadas anteriores, isso não é apenas porque foram descobertas novas fontes, mas porque as percepções também mudaram. Por um lado, a documentação soviética aberta a partir da desintegração do bloco socialista não correspondeu necessariamente às expectativas da última onda cold warrior. Por outro lado, seus críticos puderam aprofundar desde então teses inovadoras feitas em um momento de muitas limitações.
A produção histórica de uma época pode ter mais a ver com a percepção de uma sociedade sobre a história do que com o seu conteúdo, propriamente dito. Isso não é dizer que os acontecimentos não importam, afinal é o seu impacto que leva uma sociedade a criar, ou não, uma forma de enxergá-los. Mas que isso não depende só deles. Os anos de silêncio sobre o “totalitarismo soviético” na década de 1940 são uma prova disso.
Aliás, o termo é um exemplo de como a relação de uma sociedade com a história pode enquadrar e inspirar suas produções, dado que a partir dos anos de 1950 o totalitarismo reflete a tendência geral de dividir e resumir o mundo inteiro em duas esferas de influência, uma das quais é sempre vista como mais “excêntrica”. Neste caso, a sociedade soviética, subestimada pelos cold warriors como passiva e iludida pelo Estado.
Em contrapartida, a interpretação totalitária daqueles anos é também uma forma de ver como podemos escapar das armadilhas do senso de que o encontro da escrita da história com a política e o presente será sempre maléfico e enganoso. Como disse, os estudiosos contrários ao enfoque da Guerra Fria não teceram suas críticas descolados de seu tempo, mas inspirados pelas lutas dos excluídos da divisão do mundo. Isso não as equipara, mas mostra que é possível diferenciar cada caso, conforme sugeri inicialmente.
A vertente cold warrior estabeleceu um dogma que limitou o conhecimento a uma visão fechada de mundo, enquanto seus críticos procuraram inserir figuras e aspectos que eram previamente descartados pelo simples fato de que podiam não levar aos resultados aguardados. A seu modo, os primeiros replicaram em seus estudos o ímpeto totalitário que tanto condenavam, e, os segundos, a resistência ao controle que se esperava aflorar na União Soviética, mas que questionou todas as formas de autoritarismo em sua época.
A questão, contudo, não se resume a escolher entre um tipo e outro. A sucessão das épocas, com as metamorfoses na cultura, nos espaços e nas preocupações, mudará as percepções sobre a história que acreditávamos fazer algum sentido ao nosso presente e talvez, ao futuro. Sendo assim, é preciso observar se a relação que tínhamos com a história tempos atrás não deixa escapar no presente algo que não estávamos preocupados antes, até porque poderíamos não saber disso sem a passagem de um momento para o outro. Portanto, a política e o presente são essenciais para a interpretação histórica, como mostra a sempre polêmica escrita da história do comunismo.
* Lúcio Geller Junior é historiador. Graduado e Mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), autor da “Linha do tempo dos territórios da Iugoslávia”, adendo à edição brasileira de O assassinato de uma nação: como os Estados Unidos e a OTAN destruíram a Iugoslávia, de Michael Parenti (Da Vinci). Estuda e escreve sobre a história dos países do Leste Europeu e das ex-repúblicas da União Soviética, migrações contemporâneas, memória e usos do passado soviético e extrema direita.
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